Coisas que não dá para engolir

Colheita azeite Costa Doce, 2019. Foto: Wesley Santos/Agência PressDigital

Azeite rançoso, vinho azedo e leite adulterado são produtos difíceis de engolir. No Brasil, os últimos trinta anos marcaram uma grande evolução na qualidade de alguns produtos. Nossos azeites ganham prêmios internacionais, nossos vinhos são respeitados e nossos queijos fazem sucesso até na França. A abertura do mercado brasileiro para importação na década de 90 ampliou nosso referencial de qualidade e serviu como inspiração para o aperfeiçoamento de algumas categorias de produtos.

Nesses últimos 30 anos, aprendemos também que não basta prestar atenção à qualidade de um produto. É preciso prestar atenção à qualidade do produtor e da cadeia produtiva. Em 1990, diversos ativistas expuseram a presença de trabalho infantil nas fábricas que produziam calçados para a Nike no Oriente. Na época, começava a aumentar a pressão para que empresas tivessem maior “responsabilidade social”.  Era uma questão simples, com uma lógica que eu acho fácil de entender: faz sentido uma empresa promover os esportes, lucrar bastante a ponto de oferecer patrocínios milionários a atletas, cobrar caro pelos seus produtos e fechar os olhos para o fato de que crianças, que deveriam estar na escola, trabalhavam em suas fábricas?

A Nike teve que se posicionar, mudou práticas de contratação de fornecedores e a história se tornou emblemática. Muitas outras empresas tiveram as suas cadeias expostas (no Brasil, por exemplo, Zara e Lojas Marisa) e em comum a todos os casos, estava a resposta: “A culpa é da empresa para quem terceirizamos a produção. A gente não sabia de nada”. Tênis bonito, roupa estilosa, e desculpa esfarrapada.

O conceito de “responsabilidade social” foi se transformando e hoje corre no mercado pelo nome de ESG (Environmental, Social and Governance). A seriedade com que as empresas adotam as práticas ESG é bastante variável. Há todo um mercado de consultoria em volta disso e muita discussão acadêmica, mas é possível resumir o assunto sob uma perspectiva ética. É correto que uma empresa tenha lucro. Lucro é a justa remuneração de um produto ou serviço oferecido para a sociedade. Já a exploração de pessoas de maneiras degradante é algo que começou a cair em desuso, pelo menos do ponto legal, desde que a escravidão foi abolida no Brasil há 135 anos. Durante esse tempo, que é mais curto do que parece, tem aumentado a percepção de que algumas coisas são difíceis de engolir, como a desculpa de que não se sabe o que aconteceu com uma empresa terceirizada na sua cadeia produtiva.

A postura inaceitável das vinícolas Aurora, Salton e Garibaldi no caso dos trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão me acendeu um alerta: poderia acontecer o mesmo na indústria de olivicultura brasileira? Eu tinha alguns elementos para acreditar que não, mas preferi confirmar minhas hipóteses conversando com o Renato Fernandes, presidente do Instituto Brasileiro de Olivicultura, e com o Luiz Eduardo Batalha, maior produtor de azeites brasileiros.

De acordo com a EMBRAPA, as plantações de uva ocupam 78 mil hectares no Brasil. Só isso dá uma noção da intensa demanda de mão de obra concentrada em períodos específicos do ano. Já os olivais, cuja safra se concentra nos meses de fevereiro e março, ocupam pouco mais que 7 mil hectares. Isso torna a operação de colheita mais gerenciável. O maior produtor, azeites Batalha, contrata no máximo 100 trabalhadores extras para este período. Operações em escala demandam maior atenção e protocolos mais rígidos. No caso das uvas, aparentemente sequer havia protocolo para tratamento de terceirizadas e trabalhadores.

A maior parte dos produtores de azeite possui pequenas propriedades, e a colheita é feita pelos funcionários, familiares e amigos. A contratação é feita diretamente e não há terceirização de mão de obra. O azeite Nina, por exemplo, que acabou de receber a primeira certificação de azeite orgânico do Rio Grande do Sul, é produzido numa propriedade de 4 hectares, com 1.000 árvores. A proprietária, que colheu 20 toneladas nesta safra de 2023, além da família, contratou seis trabalhadores locais, na cidade de Rosário do Sul.

Colheita da safra 2023 do Azeite Nina. Foto: acervo da produtora

A contratação de trabalhadores locais parece ser uma regra do setor da olivicultura. Luiz Eduardo Batalha, maior produtor individual de azeite no Brasil, e um dos primeiros a colocar seu produto em lojas de varejo, chega a contratar 100 pessoas, além dos 40 funcionários fixos da propriedade. Os trabalhadores são contratados em parceira com o SINE (Sistema Nacional de Emprego) e com a prefeitura de Campos Machado, que fornece os ônibus para transporte. Os trabalhadores recebem refeições e há banheiros químicos em todo o olival. Desde o início da pandemia, o Batalha aperfeiçoou o sistema de turnos, evitando inclusive que os grupos da manhã e da tarde tenham contato. Ou seja, há um protocolo para a contratação.

A produção brasileira de azeite é responsável por menos de 1% do consumo de azeite no país. Quando escrevi a primeira edição do Extrafresco: O guia de azeites do Brasil, em 2017, não havia mais que 30 marcas no mercado. Na edição mais atual (à venda na Casa Santa Luzia ou na Livrobits), já há 118 marcas e, para o próximo ano, o número pode passar de 150. Há um consenso, formado até mesmo por experts internacionais, de que estamos no caminho certo. Ana Carrilho, azeitóloga portuguesa responsável pela elaboração dos azeites da Herdade do Esporão, esteve no Brasil em fevereiro para acompanhar a extração do azeite em alguns lagares e comentou comigo: “É bonito ver quanta paixão há nos produtores brasileiros pela produção de azeites”.

Embora as evidências que eu encontrei tenham sido positivas, é bom que o segmento de olivicultura fortaleça os protocolos relacionados à contratação de funcionários. De acordo com Fernandes, presidente do IBRAOLIVA, todos os associados são orientados a trabalhar de acordo com as normas trabalhista vigentes. Com um número crescente de produtores e o amadurecimento dos olivais, a demanda por mão de obra irá crescer. Isto implica na necessidade de protocolos éticos e rígidos para evitar que um bom azeite esconda o gosto rançoso de uma má prática trabalhista. Se isso acontecer, já ficamos combinados: não vai dar para engolir uma resposta do tipo “eu-não-sabia”.

umlitrodeazeite

One Comment

  1. Excelente texto, nos lembrando que devemos verificar bem o que comemos/bebemos…certos itens nao podemos engolir!!!

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