Saturado

Às 05:15 da manhã, o enfermeiro veio retirar meu cateter intravenoso, um tubo fino de trinta centímetros, instalado na dobra interna do braço e que segue por dentro da veia, até o coração. Em casos de longa internação, ele evita que o paciente seja picado várias vezes ao dia ao receber medicamentos e coletar exames. É o último passo para receber alta, após dezessete dias internado em tratamento de COVID.

Antes disso, tinha passado um ano e meio me cuidando da maneira mais responsável possível, com a sorte de poder trabalhar de casa em tempo integral. Deixei de receber amigos, para quem tanto gosto de cozinhar. Cheguei a me indispor com a família num momento em que queriam me visitar e eu disse que só receberia visitas vacinadas.

E então, eu saturei de tanto isolamento. Uma semana antes da data prevista para minha vacinação, resolvi visitar um amigo. Ele, sem saber, já estava contaminado. Voltei para São Paulo, testei positivo e vim parar na UTI.

Na UTI, você luta para controlar a inflamação e recuperar a saturação de oxigênio. O barulho dos monitores bipando é constante. O zumbido do oxigênio passando pela máscara lembra uma longa noite insone em vôo internacional quando as horas não passam e você fica esperando o café da manhã. Quando finalmente adormece, chega a equipe de raio-x e coloca uma placa gelada nas suas costas. E novamente a equipe de enfermagem e fisioterapia para checar seus sinais. A equipe de limpeza, quase invisível mas barulhenta. E a equipe de nutrição que verifica se você quer purê ou purê.

Prostrado, porém consciente, ocupava meu tempo fazendo diagramas mentais desenhando um percurso desde esta parte visível da equipe até os anônimos que fazem tudo funcionar. Para que o remédio e o purê cheguem na hora certa, alguém está numa sala sem janelas preenchendo formulários e fazendo cotações. Comprando de seringa à mandioquinha. Estimando quantos milhares de aventais, descartados minuto a minuto, serão usados no dia. No laboratório, uma equipe processa os exames colhidos de madrugada para que os médicos possam acompanhar a evolução do paciente logo pela manhã. Dar conforto e salvar vidas é uma operação complexa de processos, máquinas e gente.

Desconfiei que ia ser entubado quando, de repente, não veio meu purê. Tinha sido colocado em jejum preparatório. No final, não foi necessário realizar o procedimento. Vi nos olhos da equipe o orgulho de ter revertido a situação. Orgulho de salvar uma vida – que valor tem isso?

Entendi melhor, então, algo que vem me saturando há um tempo: a atenção e valor desmedidos, irracionais e irresponsáveis que se atribuem a celebridades fazendo dancinhas em redes sociais, se chacoalhando por alguns trocados e recebidos.

Antes de mais nada, preciso dizer que também tenho meus momentos fúteis. A vida precisa de respiro. Não passo 24 horas estudando física quântica ou treinando abrir massa de strudel. Como miojo e assisto a séries inúteis. Mas não espero ser reconhecido nem valorizado por isso.

Reconhecimento merece alguém que, às 4 da manhã, se aproxima sorrindo de um paciente de mau hálito, recolhe sua urina, sem antes deixar de anotar a quantidade de mililitros. Alguém que dá banho em um desconhecido e diz uma palavra de encorajamento (“nós vamos cuidar do senhor, viu?”). Que comemora sua saída da UTI como se você fosse da família. Gente que, no céu, vai ter um canto especial com massagem, espumante e pão com azeite da melhor qualidade. Mas que aqui neste planeta não está valorizada o suficiente. Porque, de repente, naquilo que só pode ser um surto coletivo, decidimos colocar no centro do palco um bando de picaretas digitais.

Após a retirada do meu cateter, arrumei minha mochila. Acompanhei o nascer do sol no vale do Pacaembu, com a vista que tenho do oitavo andar do Instituto do Coração. Fiz uma oração de agradecimento por todos. E não espero que ninguém curta o que escrevi. Estou saturado de influencers e me ofendo se você me chamar disso.

Não tive alterações no olfato nem no paladar, o que era um grande medo. Fiquei internado no Instituto do Coração em SP, cuidado por uma equipe competente, carinhosa e sorridente. Deixo a todos minha gratidão e reconhecimento.

Equipe da nutrição que atrasou meu almoço duas vezes e quase me matou de fome: eu perdoo, sei que estão todos muito ocupados. E desculpem-me por devolver aquilo que se passa por molho italiano em um sachê de plástico. Eu trouxe escondido na mochila um monte de vidrinhos de azeite. Minha vida ficou por um fio mas não abri mão do meu rio de azeite.

umlitrodeazeite

26 Comments

  1. Sandro, q grandeza lembrar de todos os envolvidos no teu cuidado. Tens um espírito elevado, por isso, o pior já passou e tiveste toda a proteção Divina.
    Feliz por vc. Abraço carinhoso e um rio de bençãos

    • Sua sensibilidade, inteligencia e olhar impares, fazem crescer no meu coração o sentimento de gratidão pela vida e do privilegio de te conhecer.

      • Louvado seja Deus, que sempre ouvi as nossas orações, gratidão a Deus por mais uma obra DEUS abençoe com muita saúde

    • Sandro do céu, eu nem sabia que você havia adoecido. Que alegria ver você aqui, já em recuperação e presenteando-nos em forma de poesia a sua difícil experiência. Obrigada por compartilhar seus olhares e percepções de um momento tão individual, mas que diz respeito à tanta gente!

  2. Grande notícia primo. Muitas orações a Deus e graças a grande bondade e misericórdia de Deus, temos a felicidade de vê-lo liberado e voltando a ser o nosso Sandro iluminado e com a mesma sensibilidade de sempre. Glória a Deus.
    Deus o abençoe grandemente

    • meu caro,
      levei um susto sem tamanho quando nosso amigo Zé me contou que vc estava no meio dos fios, zumbidos e esse tempo que parece que não passa.
      ficamos aqui na força e no alívio a cada notícia de melhoras. seja bem-vindo de volta e logo que der vamos espalhar um rio de azeite em cima de uma delicioso purê (rs).
      grande abraço, extensivo a toda essa equipe incrível que mandou vc de volta pra casa!

  3. Não o conheço, mas partilho de sua gratidão pelos e pelas “de branco”, às vezes de azul e outros de verde! Com olheiras e com máscaras amassadas. Passei por pedaços ruins. Fiquei em coma por 40 horas e quando despertei houve uma festa desde o intensivista até a faxineira. Nada pago. Meu marido sentado no chão chorando foi consolado e foi recebido com palmas. Parabéns pelo seu reconhecimento sincero aos da saúde. Em acreditar neles. E é possível, que como eu, deteste que te chame de guerreiro. Eu sequer vi o que fizeram comigo. Creio que contigo também. Seja benvindo.

  4. Caro Sandro, fico feliz com teu restabelecimento! Enxergar essas pessoas e o valor que elas tem só pode fazer bem a quem recebeu tanta atenção, profissionalismo e humanidade. Isso alimenta, cai bem como um pedaço de pão com azeite!

  5. Sandro, que lindo e sensível texto, um testemunho do quanto os valores na vida mudam, quando estamos diante de grandes obstáculos! Que sua vida plena, com rios de azeite irrigando corpo e alma! Saberes e sabores seculares desse rico alimento me salvaram, sinto que a você também! Conte comigo! Forte abraço.

  6. 🌺Sandro, linda foto, cheia de significados. A paisagem lá fora diz tudo, muito apropriada para uma nova perspectiva. Muito feliz que você está em casa, gostei muito do que escreveu. Demora um pouco, mas a recuperação será plena. Cuide-se bem, vale até uma plaquinha de “lar doce lar” 🌺

  7. Grande amigo e irmao Sandro, sempre nos presenteando com sua sensibilidade e inteligência. Deus te abençoe.

  8. Sandro, que texto emocionante! Parabéns pela recuperação. Mas sobretudo parabéns por compartilhar essa mensagem de alerta que nos faz reexaminar nossa escala de valores. Uma ótima e total recuperação. E que seja muito “azeitada”. Com certeza vai ajudar. Abraços.

  9. Que bom te ver bem de novo meu amigo!
    Imagino que não tenha sido fácil. Mas conseguiu transformar isso em um belo texto. Eu daria um like com certeza.
    Abraço!!

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